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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Rifa-se um coração

Rifa-se um coração


Rifa-se um coração quase novo.


Um coração idealista.


Um coração como poucos.


Um coração à moda antiga.


Um coração moleque que insiste


em pregar peças no seu usuário.


Rifa-se um coração que na realidade está um


pouco usado, meio calejado, muito machucado


e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões.


Um pouco inconseqüente que nunca desiste


de acreditar nas pessoas.


Um leviano e precipitado coração


que acha que Tim Maia


estava certo quando escreveu...


"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero,


é isso que eu espero...".


Um idealista...Um verdadeiro sonhador...


Rifa-se um coração que nunca aprende.


Que não endurece, e mantém sempre viva a


esperança de ser feliz, sendo simples e natural.


Um coração insensato que comanda o racional


sendo louco o suficiente para se apaixonar.


Um furioso suicida que vive procurando


relações e emoções verdadeiras.


Rifa-se um coração que insiste em cometer


sempre os mesmos erros.


Esse coração que erra, briga, se expõe.


Perde o juízo por completo em nome


de causas e paixões.


Sai do sério e, às vezes revê suas posições


arrependido de palavras e gestos.


Este coração tantas vezes incompreendido.


Tantas vezes provocado.


Tantas vezes impulsivo.


Rifa-se este desequilibrado emocional


que abre sorrisos tão largos que quase dá


pra engolir as orelhas, mas que


também arranca lágrimas


e faz murchar o rosto.


Um coração para ser alugado,


ou mesmo utilizado


por quem gosta de emoções fortes.


Um órgão abestado indicado apenas para


quem quer viver intensamente


contra indicado para os que apenas pretendem


passar pela vida matando o tempo,


defendendo-se das emoções.


Rifa-se um coração tão inocente


que se mostra sem armaduras


e deixa louco o seu usuário.


Um coração que quando parar de bater


ouvirá o seu usuário dizer


para São Pedro na hora da prestação de contas:


"O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo,


só errei quando coloquei sentimento.


Só fiz bobagens e me dei mal


quando ouvi este louco coração de criança


que insiste em não endurecer e,


se recusa a envelhecer"


Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por


outro que tenha um pouco mais de juízo.


Um órgão mais fiel ao seu usuário.


Um amigo do peito que não maltrate


tanto o ser que o abriga.


Um coração que não seja tão inconseqüente.


Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,


mas que incomoda um bocado.


Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda


não foi adotado, provavelmente, por se recusar


a cultivar ares selvagens ou racionais,


por não querer perder o estilo.


Oferece-se um coração vadio,


sem raça, sem pedigree.


Um simples coração humano.


Um impulsivo membro de comportamento


até meio ultrapassado.


Um modelo cheio de defeitos que,


mesmo estando fora do mercado,


faz questão de não se modernizar,


mas vez por outra,


constrange o corpo que o domina.


Um velho coração que convence


seu usuário a publicar seus segredos


e a ter a petulância de se aventurar como poeta


Clarice Lispector

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